Por André Andrade
Antes de iniciar, gostaria de deixar claro que não pretendo ser aqui um crítico literário. E a prova disso é que ninguém que pleiteie tal mérito inicia sua carreira falando de um clássico como Ilusões Perdidas, do vociferante Honoré de Balzac. A maestria com que este grande escritor descreve o poder devastador da mídia de sua época é um ponto marcante dessa obra, e que entre os diversos assuntos abordados, é a que mais transparece a raiva pessoal do escritor para com esta corja de assassinos da arte. Esse é o foco deste texto, o poder exercido pela mídia desde seus primórdios, segundo Balzac.
Em linhas gerais, a obra, que faz parte de uma grande coletânea de narrativas intituladas A Comédia Humana, narra a história de um poeta que também escreve prosa nascido na provinciana região da França, a cidade de Angoulême, e que por isso mesmo não vê um futuro brilhante caso não se arrisque a tentar vender sua arte na capital parisiense. A vaidade é a marca de Lucien Chardon, que por ser pobre, não esconde seu desejo de atrair para si fama e riqueza. Ao chegar em Paris, Lucien se vê abandonado por aquela que lhe prometeu ajuda em Angoulême, uma instruída mulher que também tentar ascender dentro da linhagem nobre, planos estes cuja ligação com Lucien somente atrapalharia seus objetivos. Renegado, humilhado ante a “Alta Sociedade” e com dificuldades financeiras, Lucien arrisca sua genialidade de escritor aventurando-se nas redações dos jornais. Ele faz amizades sinceras que o aconselham a esperar, a não se corromper em um meio tão imundo como o midiático, conselhos que ele dispensa pelo fato de sua ansiedade, alimentada pela vaidade desastrosa, não deixar que ele perca mais nenhum dia vivendo em miséria.
É claro que a história não se resume a Lucien Chardon, todavia, para nosso intento, esta breve colocação já basta para nos situarmos na crítica mais ferrenha que Balzac tece em sua obra. Em sentido amplo, duas frases contidas no livro podem nos dar uma visão estrutural da obra: “A inteligência é a alavanca com a qual se move o mundo. Mas uma outra voz gritava-lhe que o ponto de apoio da inteligência era o dinheiro”. Essa é a peleja das personagens pobres da história, tendo genialidade de sobra, lhes faltavam dinheiro para apoiarem tamanho talento. O que o nosso poeta provinciano foi procurar em Paris querendo achar logo de imediato foi reconhecimento e apoio$. Não conseguindo no tempo hábil que planejava, e vendo suas economias evaporarem, foi a procura de algum redator que lhe concedesse espaço em algum jornal para sobreviver.
É a partir desse acontecimento, o ingresso de Lucien na área jornalística, como crítico de peças e de livros, é que Balzac expõe o poder de uma mídia corrupta, que não tem apreço pelo material que se analisa, e sim pelo preço que pagarão pela crítica. Como resume a fala de Loustoeau, jornalista que introduziu Lucien no jornalismo, a seu pedido, “a polêmica é o pedestal das celebridades”. O inocente Lucien, que alimentava um alma de poeta, não conseguiu entender este mundo escarnecedor retratado na narrativa balzaquiana, e foi por não entender que sucumbiu (a volta de Lucien a sua cidade natal é de uma humilhação indescritível, aliás, descritível somente por Balzac).
Todo artista, escritor, atores e atrizes, donos de teatros, tinham de manter um forte vínculo com algum jornalista, vínculo este mantido por um jogo de barganhas. Aqueles que se negassem a tal empreendimento teriam suas obras, suas artes desqualificadas nas letras da imprensa. O público então respondia com a repulsa à obra, cuja leitura dos jornais lhes indicava as orientações das melhores artes a serem apreciadas, e as piores a serem desamparadas, ou seja, aquelas que os jornalistas queriam que fossem aceitas ou desprezadas. O efeito das colunas dos jornais era instantâneo. Uma peça de teatro da alta qualidade poderia ser transformada à força da pena na pior espécie de peça que já existiu. E uma peça de baixa qualidade poderia ter seus salões lotados, conforme a força da pena. Então era assim, as pessoas não apreciavam a arte, mas a opinião do jornalista.
Efeitos mais devastadores se encontravam no mercado editorial. Ao custeio para edição de livros os editores tinham de somar os custos com o jornalista que teceria a “crítica”. O editor que não aceitasse a barganha veria seus investimentos afundarem com os livros parados nas prateleiras das livrarias, processo este que poderia ser revertido com a aceitação das condições impostas ao editor. O próprio Lucien conseguiu extorquir um certo editor que não queria aceitar ler e editar sua coletânea de poemas, As Margaridas. Na loja do editor não foi sequer percebido, todavia, com o poder da pena, fez o negociante de livros se deslocar de sua loja até o jovem poeta pedir que o mesmo revertesse a crítica que fez o seu mais recente lançamento congelar nas estantes.
O pior de tudo era a possibilidade da impessoalidade que o jornal permitia. Balzac resume de forma simples e completa todo o espírito dilacerante dos jornais: “em vez de ser um sacerdócio, tornou-se um meio para os partidos; e de um meio passou a ser um comércio, e como todos os comércios, não tem fé nem lei. Todo jornal é uma loja onde se vendem ao público palavras com as cores que ele deseja. Se existisse um jornal de corcundas, dia e noite provaria a beleza, a bondade, a necessidade dos corcundas. Um jornal não é feito mais pra esclarecer, mas para adular as opiniões. Assim, todos os jornais serão em um dado tempo covardes, hipócritas, infames, mentirosos, assassinos, matarão as idéias, os sistemas, os homens, e por isso mesmo florescerão. Napoleão justificou esse fenômeno moral ou imoral, como desejarem, por meio de uma frase sublime, ditado por seus estudos sobre a Convenção: ‘os crimes coletivos não comprometem ninguém’. O jornal pode se permitir a mais atroz conduta, ninguém sairá pessoalmente maculado”.
Esse é um ponto do romance em que Balzac deixa transparecer toda sua raiva pessoal para com a Imprensa. Ele que sofreu com esse jogo de barganhas, vendo seu talento às dependências de picaretas dos jornais, quis transpor toda essa realidade da modernidade para a literatura, denunciando todo poder de manipulação que os jornalistas passaram a concentrar em suas mãos. Isso em pleno século XIX, auge da Indústria, da mecanização da produção em larga escala, época esta em que a arte se curvava à vontade da pena do redator, não importando se aquele cria ou se este somente faz destoar da situação.