domingo, 13 de novembro de 2011

Se protestar não incomodasse, não seria protesto – A narrativa de um caso


Por André Andrade


     O ato de protestar é, sem dúvida, o ato de maior magnitude do ser humano. Exige coragem, conhecimento de causa e constância pelo que se defende ao ir à luta. Necessita ainda de extremo vigor para suportar a falta de bom senso daqueles que, afetados pelas consequências geradas por conta manifestações e pensando somente em si próprio, ao serem incomodados, agem de maneira hipócrita diante de tais circunstâncias.
     Aquele que protesta faz isso porque sofre alguma injustiça, não é assistido pelo poder público e chegando a uma situação de exasperação, busca reivindicar seus direitos como forma de amenizar as agruras que vem passando. Em coletividade, as ações reivindicativas são mais fecundas e incisivas no sentido de que em maior quantidade, o poder de interferência é maior, e por isso se torna impactante, alem de chamar a atenção da sociedade em geral, mesmo que o problema que motiva e desemboca no protesto não incida diretamente sobre os interesses da maior parte dos indivíduos que a compõem.
     Faz pouco tempo que vivenciei um fato interessante. Saia do trabalho, na cidade de Ubaitaba, em direção à rodoviária para poder pegar o ônibus e voltar para casa. Na chegada, me deparei com a BR 101 estagnada, cheia de veículos parados na pista e me veio logo a hipótese de ter ocorrido algum acidente. Suposição desfeita ao procurar saber com aqueles que estavam mais informados sobre a questão. Manifestantes fecharam a pista e reivindicavam do governo a melhoria da estrada de chão que leva até as cidades de Taboquinhas e Itacaré. Em péssimas condições, cheia de buracos, e intransponível em dias chuvosos, além do vandalismo que ali se instalou, a estrada é uma vicinal importante por ser um atalho de fluxo constante.
     Passados uma hora desde que havia chegado na rodoviária, circularam os boatos de liberação da pista por meia hora, provavelmente fruto de alguma negociação com a polícia federal presente no local e que percebendo a extensão quilométrica de automóveis na BR, devia ter pedido um tempo para os manifestantes e desta forma tentar administrar a situação. Diante da confirmação do boato, todos a bordo no ônibus, era o momento de aproveitar a oportunidade. Custou ao motorista encaixar o ônibus em meio a um trânsito abarrotado de veículos, cena comparável à da marginal Tietê, cena incomum por aqui por essas bandas.
     Aproximando-se do epicentro do protesto, enquadrou-se instantânea e involuntariamente em minha visão uma imagem fotográfica fabulosa, cujo título seria, caso conseguisse fazer transcendê-la de minha memória, Os Miseráveis Conscientes. As minhas vistas alcançavam uma caminhonete com sua carroceria cheia de homens, mulheres e crianças com enxadas e biscós em riste. Impressionante, admiravelmente impressionante. Toda aquelas pessoas ali, mobilizaram-se e imobilizaram uma rodovia chamando a atenção de todos pelo descaso o qual estão passando. Incomodaram, e por isso foram notados juntamente com seus problemas. Quietos em suas casas eram imperceptíveis e conviviam abruptamente com um problema que consumiam suas vidas então miseráveis devido às suas condições sociais.
     Ao passar em frente aos manifestantes, o passageiro sentado atrás de mim abre a janela e começa a xingá-los, difamando a todos  e mandando-os trabalhar ao invés de “estarem ali atrapalhando a vida de quem tem ocupação”. Deprimente. Existe algo mais dignificante do que protestar? O “trabalho digno” só faz manter a ordem que oprime os desassistidos pelas políticas públicas. O protesto é uma turbulência nas engrenagens da sociedade que, desmantelando-a, mesmo por algumas horas, nos fazem pensar que a estabilidade é uma corda frágil e que nada está certo e definido. Abalar a ordem é não concordar com o que está posto, é dizer que numa sociedade as condições justas de vida não estão ao alcance de todos. O ato de protestar é uma quebra das reificações, quando então biscós e enxadas rasgam as camisas de força que o Estado e a sociedade adestrada vestem seus indivíduos.
     A cena foi triste, mas era lógico isso acontecer, porque senão poderíamos julgar que as pessoas estão melhores. Além do mais, se não incomodassem, não chamariam a atenção das autoridades políticas. É difícil esperar a compreensão das pessoas e fazer com que reflitam sobre problemas que “não lhes dizem respeito”. Todavia, essa aula de contestação civil tem de ser analisada por outra ótica que não a do alienado, daí a necessidade de sociologar.

sábado, 5 de novembro de 2011

Saindo do Limbo

Este longo hiato devido às interrupções das postagens tem diversas desculpas. Elegeria o desgaste imaginativo como a principal delas. Foram muitos textos densos e polêmicos, às vezes sem noção, admito, mas tiveram outros com (des)carga bastante questionadora, insuflada de filosofia negativa. Este blog se tornou instrumento de verdadeira catarse para a sanha intelectual de garotos (kkk, tenho de parar de ouvir Leoni) que queriam expor ideias no mínimo descabíveis. Conseguimos? Oh maybe, maybe, maybe, como já cantarolava algum poeta tentando atingir o estado do Nirvana (acho que sem heroína). Expomos o ridículo, a insensatez, o grotesco, o incabível porque temos de propor alternativas reciprocas aos adjetivos a pouco listados e que regem em nossa depreciada realidade. Aliviamos-nos. Escrever é um gesto libertário, mas incerto. Não se sabe o que o efeito de suas palavras podem provocar. Ademais, outras ocupações vieram à tona e tivemos de dissuadir de nossos ofícios no blog. Almejamos agora sair desse limbo da blogosfera e retomarmos nossas atividades, pois esse silência ensurdecedor não pode perdurar ante os gritos inaudíveis do Panóptico Social. Textos em Breve!

domingo, 24 de abril de 2011

Desbravadores de territórios já desbravados

Por André Andrade



No século XVIII o filósofo Rousseau propalava que o primeiro homem que cercou um pedaço de terra e disse que era sua propriedade e encontrou pessoas que acreditaram nele foi o fundador da sociedade civil.” Não querendo entrar no mérito sobre a origem das desigualdades, assunto este que o pensador discute a partir desta colocação, aproveitaria a citação para se perguntar: e quando a cerca é imaginária, como faz?
Aqui no Sul da Bahia, ora ou outra mechem num assunto fétido que é a questão dos limites territoriais das principais cidades dessa região, Itabuna e Ilhéus. A fagulha da vez foi a chegada de empreendimentos que se estabeleceram na zona de conflito – onde se encontra o suposto limite entre as cidades. Todavia, tais limites não delimitam a tolerância dos chefes locais, e o que passamos a assistir é uma troca de farpas de ambos os lados preocupados em levarem para si o título de cidade em expansão, ou de forma eufemisticamente colocada, em desenvolvimento.
Ilhéus, capitania quando do período colonial, sobre a égide de ser a primogênita da região, chegou ao escrúpulo ( a partir da voz de seus representantes) de “desemancipar” a pródiga Itabuna, filha rebelde que desatou laços umbilicais com a Princesa do Sul e auto-outorgando o título real de Rainha, ousadia esta advinda do fruto de ouro, muito próspero nestas terras férteis livre da maresia corrosiva do mar.
A cutucada do tigre fez o Leão rugir alto e de forma estridente. A resposta veio de um deputado que faz parte de uma comissão estadual que trata de assuntos territoriais, detalhe que deixou as autoridades ilheenses em estado de preocupação. O respectivo deputado chamou a atenção para o abandono do bairro Salobrinho, pertencente à Ilhéus, anunciando claramente as intenções de estender o domínio itabunense até o destratado bairro, e porque não a Universidade estadual de Santa Cruz, real motivo que induziu o deputado a proferir tais palavras? O que dá tal ousadia a este deputado de anunciar essas pretensiosas mudanças é o status da cidade de Itabuna que atrai toda a população das cidades circunvizinhas devido ao “turismo” comercial, o que a torna imponente ante às suas vizinhas.
O grande imbróglio é que os interesses políticos, aliados aos interesses econômicos atiçam uma rivalidade local que não traz vantagens para nenhum dos lados, e muito menos pra quem fica na berlinda, o povão. Desde o declínio da produção do fruto de ouro, a região vive à deriva, sem rumo. Assiste-se apenas o tempo passar, intercalados com algumas trocas de farpas entre os notáveis. O que se vê é uma classe média, de mão de obra qualificada, aproveitar a rentabilidade econômica provinda dos assalariados engordarem suas contas. Assalariados custeados por empresas, cujas disputas políticas as fazem se sentirem como se estivesse cedendo um favor aos miseráveis grapiúnas.
A mudança dos limites não vai mudar EM NADA a situação da população local de baixo estudo: trabalhando em regime de exploração, ganhando salário minimíssimo, compondo famílias sem condições de dedicarem-se à educação de seus filhos, ou seja, são disposições estruturais que enrijecem a linearidade de vidas que irão somente “passar”. Enquanto que os nativos trocam tapinhas, os estrangeiros, bem acomodados no meio do fogo cruzado, lucram sem reverteram nada para beneficiar o nosso espaço. Caso pensem em alguma ação do tipo, provavelmente será o financiamento de um muro da discórdia porque com toda essa abstração, essas discussões não passam de uma piada lamentável.

sábado, 9 de abril de 2011

Ainda Bourdieu Vs Marx

Por Humberto Rodrigo

  De certa uma forma dando continuidade ao meu último texto  (http://panoptico-social.blogspot.com/2011/03/consciencia-de-classe-que-classe.html ) e ainda digerindo, em doses homeopáticas, a leitura de Bourdieu (O Poder Simbólico), me volto novamente à questão do poder e das lutas de classe. Só que desta vez não com o intento de discutir se é possível ou não uma luta unificada - de fato e de direito - das classes menos favorecidas ante as elites. Desta vez o intuito é analisar a relação de uma classe qualquer (seja ela a dos operários, das domésticas, dos jogadores de xadrez da esquina,...) com o líder sindicalista e o poder.
   Em "A Ideologia Alemã" Marx assinalou que todas as classes aspiram ao poder. Eu discordo do "velho" Marx, acho até que ele pode ter se equivocado. Fazendo uma decomposição das classes em sua unidade básica, o indivíduo, eu diria que a luta da classe não é pelo poder. Diria mais: na verdade eles são avessos ao poder. Estar no poder implica liderar, e para liderar é necessário tempo, disponibilidade, pulso, exercício intelectual, dentre outros, e é consenso geral que a imensa maioria das pessoas (nesse caso a classe em questão) não está disposta a todos esse "sacrifícios". Tudo que elas querem é uma vida razoavelmente boa. Uma vida normal, sossegada, com tempo para os seus filhos e para a sua casa; com o seu trabalho estável e a viagem de férias garantida, no final do ano; em uma expressão: desejam uma vida confortável (obviamente que terá aqueles que anseiam o poder, mas sim enquanto unidade básica, e não como classe constituída). E sob esse pano de fundo que entra em cena a figura do líder sindical.
  Quem é o líder sindical? Por vezes vemos que esse líder é o cara mais "estudado", o mais engajado no movimento, o que fala em nome da categoria. Em síntese: ele é a elite dos dominados. Bourdieu fazia referência a esse líder como "o porta-voz" do grupo. Em uma assembleia, ele é o grupo, se reveste do mesmo e o personifica. A figura do líder sindicalista ganha um status tal, que este é autorizado a falar pelo grupo. Pensemos, por exemplo, o líder do sindicato dos rodoviários. Agora pensemos na quantidade de pessoas que fazem parte dessa categoria e, consequentemente, quantas pessoas estão sendo representadas na pessoa do líder. Pensamos em quantas vozes estão se pronunciando quando ele abre a boca.
   Um outro ponto que merece ser observado é que na mesma medida que o líder é a voz do grupo, o grupo também pode vim a ser a voz do líder. Ora, como vimos, o líder é aquele cara que estudou mais, o que está na linha de frente da causa. É aquele que sabe a necessidade da classe. Munido do capital cultural (conhecimento), ele possui artifícios  o suficientes para exercer o poder de convencimento (este o mais legítimo poder simbólico) sobre os seus regidos.
   A relação classe X poder deve ser analisado tanto da vertente de baixo para cima, quanto de cima para baixo. É fato que muitos desejam o poder, entretanto vejo com certa cautela a idéia de que todas as classes anseiam o poder. Vejo na verdade, certa aversão ao mesmo.

PS¹- Não é intenção do texto, muito menos do blogueiro, deturpar o trabalho dos líderes sindicais, nem tampouco pó-los como meros manipuladores, e as classe regidas por eles como massa-de-manobra. Longe de generalizações, o texto tem por intuito abordar situações que, frequentemente, ocorrem no seio da sociedade.

PS²- Apesar de o título sugerir, nunca houve de fato algum tipo de "duelo" entre Pierre Bourdieu e Karl Marx. É bem verdade que existem alguns asteriscos do primeiro em relação ao segundo, mas nada que possa ser considerado como uma crítica ferrenha ou uma briga (pelo menos não no humilde conhecimento deste blogueiro). O que houve foi um confrontamento, por parte do blogueiro, das teorias de ambos.

domingo, 3 de abril de 2011

A irresponsabilidade manda e o Mosquito da dengue executa

Por André Andrade


Um grave problema endêmico que persiste em nosso meio e que tende a se agravar com a grande incidência das chuvas no verão é a dengue. Transmitida pelo Aedes aegypi, o mosquito “odioso do Egito” espalha a calamidade que mais atribula a vida da região pós-cacauicultora, depois da vassoura-de-bruxa. Certo é que todo ano existe essa apreensão de se viver uma pandemia regional devido aos altos índices de infestação do mosquito, todavia, quem provoca a possibilidade de reprodução do mosquito não deveria ser a verdadeira responsável por essa situação?
O mosquito é um bichinho irracional que por instinto, se alimenta de algumas gotículas humanas, e carregando o vírus da dengue, devido a sua condição genética, involuntariamente transmite o vírus da dengue. Quem permite a possibilidade de reprodução do vetor da dengue, deixando acumular águas em recipientes abandonados nas ruas, quintais e terrenos baldios é o chamado Homem da Sapiência. A ausência de escrúpulo de quem joga garrafas de bebidas pelas janelas dos ônibus, que deixa tonéis de águas descobertas, ou joga recipientes em terrenos abandonados propicia a formação de assassinos irracionais que matam sem culpa, sem consciência.
A proliferação do mosquito é a conseqüência da absurda irresponsabilidade humana que já se cansou de ouvir dos perigos da doença, mas que insiste em intentar negligentemente contra a própria vida. Estamos combatendo o inimigo errado. Temos de atentar contra a falta de consciência das pessoas. A figura do mosquito disfarçado em nosso meio em uma roda de samba, por exemplo, é uma forma errada de pensar o problema, e desencadeia uma forma errada de combatê-la. O alvo não é o mosquito, e a irresponsabilidade humana.
Deve-se fazer uma campanha em que demonstre a fonte primária do surgimento do mosquito, e atinja desta forma a consciência das pessoas. Deve-se também mostrar os resultados das faltas de responsabilidades tendo como maiores conseqüências a morte das pessoas, mostrando que evitando o acúmulo de água em recipientes, ou seja, gestos ínfimos podem fazer com que mortes possam ser evitadas.
Estamos numa guerra no qual os irracionais são os mandantes propiciadores do surgimento dos mosquitos, simples executores que agem por instinto, por bom senso da natureza.

domingo, 27 de março de 2011

As Ilusões Perdidas de Honoré de Balzac - A força da Pena


Por André Andrade

Antes de iniciar, gostaria de deixar claro que não pretendo ser aqui um crítico literário. E a prova disso é que ninguém que pleiteie tal mérito inicia sua carreira falando de um clássico como Ilusões Perdidas, do vociferante Honoré de Balzac. A maestria com que este grande escritor descreve o poder devastador da mídia de sua época é um ponto marcante dessa obra, e que entre os diversos assuntos abordados, é a que mais transparece a raiva pessoal do escritor para com esta corja  de assassinos da arte. Esse é o foco deste texto, o poder exercido pela mídia desde seus primórdios, segundo Balzac.
Em linhas gerais, a obra, que faz parte de uma grande coletânea de narrativas intituladas A Comédia Humana, narra a história de um poeta que também escreve prosa nascido na provinciana região da França, a cidade de Angoulême, e que por isso mesmo não vê um futuro brilhante caso não se arrisque a tentar vender sua arte na capital parisiense. A vaidade é a marca de Lucien Chardon, que por ser pobre, não esconde seu desejo de atrair para si fama e riqueza. Ao chegar em Paris, Lucien se vê abandonado por aquela que lhe prometeu ajuda em Angoulême, uma instruída mulher que também tentar ascender dentro da linhagem nobre, planos estes cuja ligação com Lucien somente atrapalharia seus objetivos. Renegado, humilhado ante a “Alta Sociedade” e com dificuldades financeiras, Lucien arrisca sua genialidade de escritor aventurando-se nas redações dos jornais. Ele faz amizades sinceras que o aconselham a esperar, a não se corromper em um meio tão imundo como o midiático, conselhos que ele dispensa pelo fato de sua ansiedade, alimentada pela vaidade desastrosa, não deixar que ele perca mais nenhum dia vivendo em miséria.
É claro que a história não se resume a Lucien Chardon, todavia, para nosso intento, esta breve colocação já basta para nos situarmos na crítica mais ferrenha que Balzac tece em sua obra. Em sentido amplo, duas frases contidas no livro podem nos dar uma visão estrutural da obra: “A inteligência é a alavanca com a qual se move o mundo. Mas uma outra voz gritava-lhe que o ponto de apoio da inteligência era o dinheiro”. Essa é a peleja das personagens pobres da história, tendo genialidade de sobra, lhes faltavam dinheiro para apoiarem tamanho talento.  O que o nosso poeta provinciano foi procurar em Paris querendo achar logo de imediato foi reconhecimento e apoio$. Não conseguindo no tempo hábil que planejava, e vendo suas economias evaporarem, foi a procura de algum redator que lhe concedesse espaço em algum jornal para sobreviver.
É a partir desse acontecimento, o ingresso de Lucien na área jornalística, como crítico de peças e de livros, é que Balzac expõe o poder de uma mídia corrupta, que não tem apreço pelo material que se analisa, e sim pelo preço que pagarão pela crítica. Como resume a fala de Loustoeau, jornalista que introduziu Lucien no jornalismo, a seu pedido, “a polêmica é o pedestal das celebridades”. O inocente Lucien, que alimentava um alma de poeta, não conseguiu entender este mundo escarnecedor retratado na narrativa balzaquiana, e foi por não entender que sucumbiu (a volta de Lucien a sua cidade natal  é de uma humilhação indescritível, aliás, descritível somente por Balzac).
Todo artista, escritor, atores e atrizes, donos de teatros, tinham de manter um forte vínculo com algum jornalista, vínculo este mantido por um jogo de barganhas. Aqueles que se negassem a tal empreendimento teriam suas obras, suas artes desqualificadas nas letras da imprensa. O público então respondia com a repulsa à obra, cuja leitura dos jornais lhes indicava as orientações das melhores artes a serem apreciadas, e as piores a serem desamparadas, ou seja, aquelas que os jornalistas queriam que fossem aceitas ou desprezadas. O efeito das colunas dos jornais era instantâneo. Uma peça de teatro da alta qualidade poderia ser transformada à força da pena na pior espécie de peça que já existiu. E uma peça de baixa qualidade poderia ter seus salões lotados, conforme a força da pena. Então era assim, as pessoas não apreciavam a arte, mas a opinião do jornalista.
Efeitos mais devastadores se encontravam no mercado editorial. Ao custeio para edição de livros os editores tinham de somar os custos com o jornalista que teceria a “crítica”. O editor que não aceitasse a barganha veria seus investimentos afundarem com os livros parados nas prateleiras das livrarias, processo este que poderia ser revertido com a aceitação das condições impostas ao editor. O próprio Lucien conseguiu extorquir um certo editor que não queria aceitar ler e editar sua coletânea de poemas, As Margaridas. Na loja do editor não foi sequer percebido, todavia, com o poder da pena, fez o negociante de livros se deslocar de sua loja até o jovem poeta pedir que o mesmo revertesse a crítica que fez o seu mais recente lançamento congelar nas estantes.
O pior de tudo era a possibilidade da impessoalidade que o jornal permitia. Balzac resume de forma simples e completa todo o espírito dilacerante dos jornais: “em vez de ser um sacerdócio, tornou-se um meio para os partidos; e de um meio passou a ser um comércio, e como todos os comércios, não tem fé nem lei. Todo jornal é uma loja onde se vendem ao público palavras com as cores que ele deseja. Se existisse um jornal de corcundas, dia e noite provaria a beleza, a bondade, a necessidade dos corcundas. Um jornal não é feito mais pra esclarecer, mas para adular as opiniões. Assim, todos os jornais serão em um dado tempo covardes, hipócritas, infames, mentirosos, assassinos, matarão as idéias, os sistemas, os homens, e por isso mesmo florescerão. Napoleão justificou esse fenômeno moral ou imoral, como desejarem, por meio de uma frase sublime, ditado por seus estudos sobre a Convenção: ‘os crimes coletivos não comprometem ninguém’. O jornal pode se permitir a mais atroz conduta, ninguém sairá pessoalmente maculado”.
Esse é um ponto do romance em que Balzac deixa transparecer toda sua raiva pessoal para com a Imprensa. Ele que sofreu com esse jogo de barganhas, vendo seu talento às dependências de picaretas dos jornais, quis transpor toda essa realidade da modernidade para a literatura, denunciando todo poder de manipulação que os jornalistas passaram a concentrar em suas mãos. Isso em pleno século XIX, auge da Indústria, da mecanização da produção em larga escala, época esta em que a arte se curvava à vontade da pena do redator, não importando se aquele cria ou se este somente faz destoar da situação.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Consciência de Classe? Que Classe?

Por Humberto Rodrigo

“A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história da luta de classes.”. É com essa célebre frase de se dá início ao primeiro capítulo de O Manifesto Comunista (obra mais de Marx que de Engels). As classes às quais Marx se refere são burguesia e proletariado. Estas, viveriam – ainda segundo o nosso autor – em constante tensão. Mas o que Marx parece não ter percebido é que a briga não é apenas entre burguesia e proletariado. A briga mais intensa, talvez, ocorre intraclasses.
A coerência do pensamento marxista (aqui usado referindo-se diretamente ao autor e não à grupos humanos que se alcunham como tal) é sem dúvidas fantástica: as relações de opressão apontadas por Marx criaram um grande mal estar na zona de conforto em que a burguesia se encontrava. A grande base de fundamentação de suas teorias baseava-se no conceito das lutas de classes. Mas Marx deixa a desejar é quanto a briga interna das classes. Explico: o “povo” não quer ser visto como “povo”. Bourdieu, em O Poder Simbólico, já nos traz a briga que cada classe tem para buscar a sua diferenciação. Enquanto aquele pensou a sociedade como bidimensional, dividindo-se apenas entre burguesia e proletariado, este a vê como uma organização multidimensional. Em Bourdieu já não se fala mais em classes sociais e sim em campo e sub-campos. Pela sua divisão dicotômica, Marx vê a classe social como algo uniforme onde todo o substrato burguês pensa única e exatamente de uma forma e por outro lado, o substrato proletariado, também pensaria de maneira uniforme. Não. Perdoem-me a redundância, mas se estamos falando de classes sociais, estamos falando de pessoas. Apesar de sua genialidade, o autor alemão não se deu conta de que os seres humanos são vaidosos por natureza, a diferenciação lhes dá um ar de superioridade, como o médico que não quer fazer o trabalho da enfermeira, nem esta o papel da técnica de enfermagem, apesar de as funções de todos eles serem relativamente próximas umas das outras. E nada mesma medida que isso se deve pela diferenciação profissional, tambpem se dá no campo do ganho simbólico do “nome” da profissão. Isso é possível ser localizado até programas lúdicos, como o próprio seriado Chaves onde o cenário é uma vila pobre na Cidade do México. Todos têm mais ou menos a mesma condição financeira, no entanto o discurso de Dona Florinda em referência à Seu Madruga é: “Vamos tesouro. Não se misture com essa gentalha.” Na concepção marxista tal fala não seria possível uma vez que ali é o proletariado falando para o proletariado. Marx vê o proletariado como um bloco uniforme, e aí está o seu erro.
A idéia de se fazer uma revolução à moda antiga bipartindo a sociedade entre os que têm os meios de produção e os que não têm, se mostra deveras superada. O conceito de habitus também proposto por Bourdieu é que mais se encaixa no que vemos hoje de sociedade. Não há sentido em dividir a sociedade em dois blocos, sendo que não há uniformidade entre eles. Proletariado não é só proletariado. O erro de Marx foi subestimar a capacidade de sonhar e de se diferenciar, existentes no seio da massa. Com pensamento tão heterogêneo e com uma diversidade de sub-campos ocupando o mesmo habitus de uma “classe” acho cada vez mais difícil ver a sugestão do Marx, ao final do livro, se cumprir: “Proletários de todo o mundo, uni-vos”.