sábado, 19 de fevereiro de 2011

O Elogio da Bizarrice



 Por André Andrade

Não quero imitar o Erasmo de Roterdã, e muito menos incitar-se em seu sarcasmo e ironia presente em sua obra, O Elogio da Loucura. Pretendo direcionar os mais verdadeiros elogios às bizarrices que costumamos encontrar em nosso cotidiano. O fato é: por que o povo passou a dar valor a músicas que não tem nenhum sentido (aprioristicamente falando)? Dito isto, não quero levar em consideração a música em seu estilo, mas em seu conteúdo, e o que está em voga não é bem a música em si, mas o valor depositado a elas. Todo caos tem sua ordem, se compreendida, então não podemos olhar esses eventos de forma depreciativa, como eu mesmo já fiz, confesso, chegando a dizer que tais aberrações são desprovidas de significância. Retificarei meu erro.
                As cosmologias das classes desfavorecidas nos dão dados que justificam a valorização de músicas depravadas, sem sentido, sem letra, contudo, relevantes quando interligadas à vida que a pobreza os relegam. De fato, observamos um aumento considerável destes gêneros musicais, mas aí não podemos deixar de entrever interesses mercantis que exploram essas formas de lazer que essas classes degustam. Nesse sentido, não quero dizer que a pobreza condiciona as pessoas a cultuar músicas “bizarras”, mas que sua baixa condição econômica restringe seu universo fazendo com que tendenciosamente, passem a criar gosto por esses tipos de músicas, o que não impede de criar outros gostos, o que dependerá de influências de outras pessoas e outros fatores infinitamente apontáveis.
                O que se passa é que a grande maioria dessas pessoas que “curtem” músicas bizarras são pessoas que não puderam dar prosseguimento em seus estudos, tem ritmo de trabalho bastante intenso, quando não, trabalham informalmente, são subempregados e tem sempre de estar a “dar duro” para que não falte comida em casa. Nesse contexto, o lazer desses estão resumidas ao sexo, televisão, música e cerveja, de maneira geral. Ouvi no ônibus de um senhor que “a única coisa que o rico não tirou do pobre foi fazer menino”. É claro que o senhor citado se refere ao prazer libidinoso que o sexo lhe permite, sendo uma conseqüência nada agradável o “menino” a que ele se refere. A falta de instruções, como diversos benefícios gratuitos que se encontram nos postos de saúde para que se evite uma gravidez não planejada levam os mais pobres a praticar sexo de forma descuidada, aumentando as dificuldades com o aumento da família.
                Quero deixar bem claro que tudo isso são especulações. Não há comprovações científicas para tais deduções. No entanto, essas observações não são infundadas. Ensinei numa modalidade de ensino em que 98% das mulheres, num universo de 110, na faixa etária de 18 a 29 anos, deixaram a escola por gravidez indesejada. Digo indesejada porque não faziam parte dos planos da maioria engravidar ao iniciarem (precocemente) a vida sexual ativa. Dessas, 90% tem dois ou mais filhos e tiveram os mesmos na adolescência. Quanto aos homens, nessa mesma modalidade de ensino, 90% deles deixaram o colégio para trabalhar e sustentar mulher e filho, tendo os outros de deixarem de estudar por necessidades que já vivenciavam. A maioria desses também tiveram filhos na fase da adolescência.
                Trago esses dados não só para mostrar que se faz necessário uma política educacional de orientação sexual por parte das escolas e quebrar esse tabu de não falar de sexo para os adolescentes, haja vista que as conseqüências são mais graves. Com isso, quero justamente falar dessas conseqüências: a formação da típica família de baixa renda. Sem o alicerce da educação, comprometidos com a família, os pais estão agora condicionados a uma vivência derradeira, isso para não falar da excessiva incidência de pais que abandonam suas crias. Ora, qual é a ligação do gosto por músicas bizarras e condição de pobreza em que estão inseridas essas típicas famílias? O lazer lhes foi tolhido. As precárias condições econômicas lhes permitem a ter acesso a cd’s/dvd’s piratas, a shows de 5,00 a 10,00 reais, a cerveja mais barata, a TV aberta, ao sexo cuja dependência se encontra somente na convenção dos parceiros. Todo o universo dos grupos sociais desfavorecidos está condicionado ao cerco que sua condição econômica lhes permite.
Nessa perspectiva, há de se fazer um esforço incondicional de compreender porque as pessoas de classe baixa não dão importância a MPB, Bossa Nova, o Rock questionador, a Chico Buarque, Tom Jobim dentre muitos outros. Lhes faltam cultura? A essa pergunta, dedico-lhe um veemente NÃO. Se disséssemos sim, então colocaríamos o termo cultura em íntima relação com a condição econômica, já que quem tem acesso a essa cultura são as classes mais favorecidas. Então estou querendo dizer que as músicas bizarras são culturais? Sim, pois, se as mesmas são desprovidas de sentido, as classes desfavorecidas lhes outorgam uma significância, a saber, o lazer!
                Diante de tantas dificuldades, privações, intempéries que uma vida de apertadas condições financeiras passa, as músicas que lhes são divertidas, de ritmos alegres, cujas letras, em sua maioria, falam de amor mesclado com sexo, quando não totalmente depravadas ou sem letras mesmo, formam, imbricadas com o sexo, cerveja e televisão, a conjuntura que fundam a coesão social das camadas mais pobres.
O senso comum dispensa letras críticas e criativas para valorizar as poesias libidinosas, em que a bebida, contos e tragédias amorosas somados a uma batida musical no qual requebram-se os quadris são elementos categoriais presentes nas aqui chamadas músicas bizarras a qual satisfazem os desejos momentâneos e a baixo custo. Tal dispensa não permite dizer que a classe pobre não tem cultura, pois o que não se tem são costumes provenientes de outra esfera econômica. Tudo bem que o que nos irrita e faz com que não reflitamos acerca do assunto é o fato de em toda lugar encontrarmos essas músicas sendo tocadas, não precisando nem sair de casa pra ter contato com as mesmas. Toda essa constância é realmente irritante, mas como diria o velho Durkheim, não deixe que tudo isso suba à cabeça, fazendo com isso um hercúleo esforço de compreender a pertinência de tais fatos em nosso meio. Todavia, dizer que isso não é cultura é um preconceito, porque isso é uma construção coletiva humana em que se procura fundamentar a existência com o que se tem.
Certo. Então, deixo esclarecer alguns pontos obscuros desta breve reflexão. 1°- Chamo de Músicas Bizarras músicas que em geral não tem nenhum intuito de criticidade e muito no quesito diversão, descontração, curtição etc. 2°- Muitos devem estar se perguntado, - Sim André, muito bonito o seu argumento, mas como fica a questão de pessoas de outras camadas sociais curtirem a música bizarras, como os estudantes universitários, que em sua maior parte provém de uma classe média. Ora minha gente, estamos falando de cultura, uma categoria que é carregada de dinamismo, interação, e não uma coisa estanque. E mesmo assim, hipoteticamente falando, se questionarmos boa parte de pessoas dessa classe, perceberemos que muitos ouvem ou já ouviram músicas de outro tipo que não as bizarras. E se curtem este tipo de música, curtem pelo mesmo motivo dos mais pobres, lazer, e que vão em busca da azaração, já que em festas com músicas bizarras sempre se avolumam pessoas com o mesma motivação já citadas aqui. E isso é uma prova de que a cultura dos mais pobres tem uma grande significância a ponto de atrair pessoas de outras estirpes econômicas e sociais. 4°- Não quero estar aqui estereotipando nenhum conjunto social, pois, como já havia dito, não são fenômenos estanques, estando sempre em devir. Meu intuito é quebrar com essa idéia de que tal coisa é cultural e tal não é, polêmica que não se esgotaria em um texto. 5°- e por último, não deixemos de entrever nas ações os interesses econômicos. Se só toca esses tipos de músicas nos bares, na rádio, na TV, é porque tem de atrair pessoas para consumirem cerveja e darem audiência. Tem uma música que prova que estou com alguma razão quanto toda esta minha ladainha, a da banda Psirico, chamada firme e forte. Opinião minha, uma das melhores músicas elaborada por um grupo musical baiano, pois fala de uma realidade de pobreza, fé e esperança, realidade esta totalmente consonante com a vida de grande parte das pessoas de baixa renda. No entanto, a música não repercutiu grande sucesso, aliás, somente parte da música fez sucesso, a parte do refrão que diz: Êee chuá chuá, ê chuá chuá.

Tchubirabirom pra tod@s!

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Foucault no Oriente Médio



Por Humberto Rodrigo

O quê os recentes acontecimentos no Oriente Médio e Michel Foucault têm em comum? Na leitura de A Ordem do Discurso, dentre outras coisas, Foucault trata do discurso e do poder que vem inerente a ele. Quem tem o “direito” de discursar? Para ter esse direito é necessário ser versado em técnica. Na Tunísia (onde a série de movimentos contra os governos “déspotas” tiveram início) um feirante ateou fogo ao próprio corpo. A idéia deste texto é co-relacionar esses dois eventos.
Na Grécia antiga o direito de discurso era dado a todo cidadão ateniense: nas grandes assembleias aberta ao público, todos os cidadãos tinham direito a voz. Um direito que era equitativo à todos, entretanto aí já se nota um esboço do binômio discurso\poder, uma vez que como o discurso era destinado aos cidadãos, aos que estavam fora dessa casta nada restava a não ser seguir o que fora imposto. A partir da Roma antiga, e mais ainda da idade Média, a relação entre discurso e poder cada vez mais foi se intensificando: em Roma com o imperador, nos feudos com a Igreja detentora da “verdade” incontestável, na modernidade com o discurso burguês. Hoje na pós-modernidade (em breve texto sobre que diabos é isso de pós-modernidade) o discurso ganhou forma e técnicas apropriadas: tem que ser metricamente fluente, obedecer regras, embasado teoricamente... Mas essa influência não é de agora vem de longa data: desde o século XVI com René Descartes. No entanto, desde Descartes, e mais ainda com o surgimento das universidades, a tendência foi cada vez mais o discurso se transformar em uma arte dotada de técnica que deve ser milimetricamente seguida. O que Foucault chama atenção é que o discurso quanto mais técnico menos acessível ele se torna: o discurso é diferenciador e localizador. Ele diz tanto quem você é, quanto de onde veio. Ora o discurso de um catedrático é radicalmente diferente de um vendedor de sapatos, por exemplo. Assim como, pelo discurso dos dois é possível localizar o extrato o social que cada um pertence. Foucault não fala dos extratos sociais, pelo menos não diretamente, mas deixa um paralelo bastante pertinente ao falar daquelas que ele chamou de “sociedades do discursos”, que nada mais eram que grupos que detinham certo método específico em recitar poemas. Embora a intenção seja de recitar o poema, o conhecimento da técnica era guardado a fio, destinado a uns poucos. Há um papel extremamente delimitado entre aquele que fala e o que escuta, papel esse que não pode ser trocado jamais. E é verdade, olhem a nossa sociedade: quem discursa usa terno e gravata, quem escuta usa, quiçá, “jeans e tênis”. E o interessante é que nesse caso não é “a verdade” que está em jogo e sim o método, o poder de convencimento, seja ele pela eloquência e retórica ou, seja pela força bruta. E o grande exemplo disso é Galileu Galilei ao mostrar que a Terra não era o centro do universo, entretanto, fora obrigado a se retratar publicamente porque o discurso (e com isso o poder) era ditado pela Igreja. O que interessava não era a verdade em si, mas a ratificação e a subserviência àquilo que se pregava na época. Palavras bonitas valem mais do que verdades perfeitas. Essa disparidade abismática entre esses dois sub-extratos (o que fala e o que ouve) é dificilmente transponível, mantendo certa estabilidade com o passar dos tempos.
Nos últimos dois meses temos visto uma verdadeira revolução no Oriente Médio. Tunísia, Egito, Jordânia... Vários países estão se rebelando contra os regimes autoritários e anti-democráticos. Mas você sabe como se deu início isso tudo? Na Tunísia com um feirante que ateou fogo ao corpo. Qual o sub-extrato de um feirante: o que fala ou que ouve? O referido feirante sempre tinha que dar (e por “dar” entendam-se se deixar ser saqueado) parte de sua produção a policias. Por várias vezes reclamou a autoridades do governo e nenhuma atitude fora tomada. Cansado disso ateou fogo ao próprio corpo, para que o seu discurso fosse ouvido. Dias depois faleceu. E dessa atitude vemos a eclosão das revoltas no Oriente Médio. A grande arma dos governos autoritários é exatamente o de concentrar em si a arte – e todo o poder – inerente ao discurso. Quem vai dar ouvidos a um feirante? Qual o sub-extrato de um feirante?
O discurso e a classe social estão intimamente associados. O dinheiro está para o poder, assim como poder está para o discurso. Na verdade o dinheiro até compra o discurso: cada vez mais se o vê o crescimento de assessorias de impressa. Quem tem o poder não fala, paga para que falem por ele. O discurso de quem habitualmente só ouve, só tem valor quando proferido por uma ampla maioria. Mas, como já dizia Pareto, é imensamente difícil mobilizar de forma organizada uma grande massa. Só quando eventos extraordinários (e, geralmente, trágicos como o feirante tunisiano) ocorrem e que há uma mobilização organizada. A Ordem do Discurso (novamente salientando que foi feito um recorte de uma parte específica do livro) foi escrito em 1970, muito do que Foucault chamou atenção está acontecendo hoje, 41 anos depois. O trágico disso tudo é que certamente muitos feirantes ainda atearão fogo ao próprio corpo, para serem "ouvidos".