domingo, 6 de fevereiro de 2011

Foucault no Oriente Médio



Por Humberto Rodrigo

O quê os recentes acontecimentos no Oriente Médio e Michel Foucault têm em comum? Na leitura de A Ordem do Discurso, dentre outras coisas, Foucault trata do discurso e do poder que vem inerente a ele. Quem tem o “direito” de discursar? Para ter esse direito é necessário ser versado em técnica. Na Tunísia (onde a série de movimentos contra os governos “déspotas” tiveram início) um feirante ateou fogo ao próprio corpo. A idéia deste texto é co-relacionar esses dois eventos.
Na Grécia antiga o direito de discurso era dado a todo cidadão ateniense: nas grandes assembleias aberta ao público, todos os cidadãos tinham direito a voz. Um direito que era equitativo à todos, entretanto aí já se nota um esboço do binômio discurso\poder, uma vez que como o discurso era destinado aos cidadãos, aos que estavam fora dessa casta nada restava a não ser seguir o que fora imposto. A partir da Roma antiga, e mais ainda da idade Média, a relação entre discurso e poder cada vez mais foi se intensificando: em Roma com o imperador, nos feudos com a Igreja detentora da “verdade” incontestável, na modernidade com o discurso burguês. Hoje na pós-modernidade (em breve texto sobre que diabos é isso de pós-modernidade) o discurso ganhou forma e técnicas apropriadas: tem que ser metricamente fluente, obedecer regras, embasado teoricamente... Mas essa influência não é de agora vem de longa data: desde o século XVI com René Descartes. No entanto, desde Descartes, e mais ainda com o surgimento das universidades, a tendência foi cada vez mais o discurso se transformar em uma arte dotada de técnica que deve ser milimetricamente seguida. O que Foucault chama atenção é que o discurso quanto mais técnico menos acessível ele se torna: o discurso é diferenciador e localizador. Ele diz tanto quem você é, quanto de onde veio. Ora o discurso de um catedrático é radicalmente diferente de um vendedor de sapatos, por exemplo. Assim como, pelo discurso dos dois é possível localizar o extrato o social que cada um pertence. Foucault não fala dos extratos sociais, pelo menos não diretamente, mas deixa um paralelo bastante pertinente ao falar daquelas que ele chamou de “sociedades do discursos”, que nada mais eram que grupos que detinham certo método específico em recitar poemas. Embora a intenção seja de recitar o poema, o conhecimento da técnica era guardado a fio, destinado a uns poucos. Há um papel extremamente delimitado entre aquele que fala e o que escuta, papel esse que não pode ser trocado jamais. E é verdade, olhem a nossa sociedade: quem discursa usa terno e gravata, quem escuta usa, quiçá, “jeans e tênis”. E o interessante é que nesse caso não é “a verdade” que está em jogo e sim o método, o poder de convencimento, seja ele pela eloquência e retórica ou, seja pela força bruta. E o grande exemplo disso é Galileu Galilei ao mostrar que a Terra não era o centro do universo, entretanto, fora obrigado a se retratar publicamente porque o discurso (e com isso o poder) era ditado pela Igreja. O que interessava não era a verdade em si, mas a ratificação e a subserviência àquilo que se pregava na época. Palavras bonitas valem mais do que verdades perfeitas. Essa disparidade abismática entre esses dois sub-extratos (o que fala e o que ouve) é dificilmente transponível, mantendo certa estabilidade com o passar dos tempos.
Nos últimos dois meses temos visto uma verdadeira revolução no Oriente Médio. Tunísia, Egito, Jordânia... Vários países estão se rebelando contra os regimes autoritários e anti-democráticos. Mas você sabe como se deu início isso tudo? Na Tunísia com um feirante que ateou fogo ao corpo. Qual o sub-extrato de um feirante: o que fala ou que ouve? O referido feirante sempre tinha que dar (e por “dar” entendam-se se deixar ser saqueado) parte de sua produção a policias. Por várias vezes reclamou a autoridades do governo e nenhuma atitude fora tomada. Cansado disso ateou fogo ao próprio corpo, para que o seu discurso fosse ouvido. Dias depois faleceu. E dessa atitude vemos a eclosão das revoltas no Oriente Médio. A grande arma dos governos autoritários é exatamente o de concentrar em si a arte – e todo o poder – inerente ao discurso. Quem vai dar ouvidos a um feirante? Qual o sub-extrato de um feirante?
O discurso e a classe social estão intimamente associados. O dinheiro está para o poder, assim como poder está para o discurso. Na verdade o dinheiro até compra o discurso: cada vez mais se o vê o crescimento de assessorias de impressa. Quem tem o poder não fala, paga para que falem por ele. O discurso de quem habitualmente só ouve, só tem valor quando proferido por uma ampla maioria. Mas, como já dizia Pareto, é imensamente difícil mobilizar de forma organizada uma grande massa. Só quando eventos extraordinários (e, geralmente, trágicos como o feirante tunisiano) ocorrem e que há uma mobilização organizada. A Ordem do Discurso (novamente salientando que foi feito um recorte de uma parte específica do livro) foi escrito em 1970, muito do que Foucault chamou atenção está acontecendo hoje, 41 anos depois. O trágico disso tudo é que certamente muitos feirantes ainda atearão fogo ao próprio corpo, para serem "ouvidos".

5 comentários:

  1. Discursar exige técnica.
    Para as massas, exige técnica e carisma.
    No cenário mundial atual, exige técnica, carisma e razão.
    (e uma boa dose de incentivo web-democrático)
    -parodiando e complementando o mestre maquiavel-
    ahu não sou napoleão mas dou minhas opinadas.. aff prometo não interferir mais..

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  2. Muitíssimo pelo contrário caro Sandro. Ta aí um personagem que eu ESQUECI de trabalhar, mas que seria bastante pertinente: Nicolau Maquiavél. Muito bem lembrado.

    Humberto Rodrigo.

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  3. Como seria o posicionamento do pensador estrategista vivendo a realidade dos dias atuais, com as ferramentas de comunicação e a revolução digital/tecnológica?
    O tal ditador chegou a acreditar que seria possível impedir telecomunicações e fechar um país para o mundo interconectado..

    Errou na técnica, no carisma e na razão, além de estar mal-preparado para o momento..

    tenho a impressão de que esta lição será incorporada à cartilha de alguns "líderes".. rs
    Que sirva de Exemplo Histórico.

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  4. E SE o ditador tivesse previsto a necessidade do discurso correto?
    Digo, o discurso de uma autoridade com plena compreensão da realidade atual teria poder de sublimar o discurso do feirante?
    E se o ditador tivesse o suporte de um backbone de "users" nas redes sociais? se seus policiais, cada um, fosse um multiplicador de opinião?
    Irá o Irã nos dar esta resposta?
    (ahu adorei o xiste)
    Está a humanidade pronta para a revolução da informação ou estamos dando sorte contando com a preguiça das gerações anteriores?
    Tenho estas dúvidas.

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